Piranhas‏
De: Marcia Sobral (marsobral@yahoo.com.br)
Enviada: terça-feira, 8 de junho de 2010 23:47:42
Para: Wagner S (wagnerschwartz@hotmail.com)


À beira do rio São Francisco, onde há passeios de catamarã dentro de cânions para a Usina de Xingó (a 12 km). Na outra margem do rio, a pequena Piranhas (AL) tem construções do séc. 19 e abriga a Grota do Angico, local da morte do cangaceiro Lampião.




De: joaolima80@hotmail.com
Assunto: piranha?
Data: 7 de abril de 2010 13h20min52s CEST
Para: contato@wagnerschwartz.com

Querido!

Obrigado pelas palavras, é um prazer manter esta conversa. Espero que estejas bem. Demorei na resposta porque estive perto do mar aproveitando a semana santa. Aqui é primavera, faz sol e alguns dias bonitos. Eu vou bem, buscando novas direções nesta minha vida errante.

Tuas impressões sobre minha apresentação ressoaram por aqui, tão pessoais que chegam a me atravessar, passando a ser impessoais, humanas antes de tudo. A verdade é que não sei muito como continuar este processo, no momento vou deixando de molho, mas estou contente com a possibilidade de voltar a apresentar, em Recife foi uma alegria.

E ainda tenho bem frescas as sensações de te ver e não te ver em cena. Um trabalho tão delicado quanto violento. Tão agudo. E pensei em tantas coisas, em outras fui puro estado.

No início esta brecha no tempo, esta suspensão, este momento de encontro com os outros na sala de representação, esse “dar-se conta de que aqui estamos”. O que são 15 minutos? Serão mesmo 15 minutos? E logo as palavras. O discurso. A fala. Uma voz muda que fala. Quem fala? Da onde fala? E eu ali, letra por letra acompanhando as palavras, palavras cheias, palavras encarnadas. Palavras, memórias, desejos. E o discurso continua, trôpego, bêbado, afiado, vivo. Um discurso despreocupado com a linguagem, um discurso que já é. Está. N`importe qu´oi. E eu vou sendo coreografado através de cada impressão na tela. É disso que se trata, de uma coreografia de impressões. Impressões de estórias através de um corpo ausente dirigidas a um corpo presente. Impressões da história nos nossos corpos. E a linguagem desaparece, deixa lugar ao movimento, às perturbações de energias. E eu continuo ali. Logo entras em cena. Branco. Sereno. De olhos fechados ou semi-abertos. E vem a dança. Um dança de ossos. Uma dentada afiada. Fui mordido.

E pensando sobre a dramaturgia da migração, penso no deslocamento, essa natureza tão nossa. Esse nosso poder. Por razões óbvias este tema me toca. E sem cair em vitimização você se faz presente. Através da presença e do poder de discurso o imigrante tem sua força, sua mais-valia é a sua vida. Pasternak, citado por Maurice Blanchot diz sobre os judeus: “Isso existe para que exista a idéia de êxodo e a idéia de exílio como movimento justo; isso existe, através do exílio e por meio dessa iniciativa que é o êxodo, para que a experiência da estranheza se afirme junto a nós numa relação irredutível; isso existe para que, pela autoridade dessa experiência, aprendamos a falar” e na sua Conversa Infinita, Blanchot continua: “Será que é necessário pôr-se na estrada e errar porque, excluídos da verdade, somos condenados à exclusão que proíbe toda permanência?” E ainda: “se há efetivamente separação infinita, cabe à palavra convertê-la no lugar do entendimento, e, se há abismo intransponível, a palavra o atravessa. A distância não é abolida, não é sequer diminuída; é, ao contrário, mantida preservada e pura pelo rigor da palavra que sustenta o absoluto da diferença”.

Agora te deixo com isto: http://www.youtube.com/watch?v=ynYQa2Bg6S4

A conversa segue, um grande abraço!

João


De: alineschwartz@gmail.com
Assunto: Exercício de Encorajamento
Data: 25 de janeiro de 2010 21h12min47s CET
Para: contato@wagnerschwartz.com


O não-pertencimento, esta sensação estranha que você descreve te faz criar pelo seguinte fato: Você cria vários eus possíveis e que te fazem ter o direito de ir-e-vir ampliado, porque não fica somente em solo, mas também no ar. Posso dizer também que você não faz "solo" e, sim, duos, trios, etc.

Seu corpo está marcado por histórias de várias línguas, culturas, amores, dores e devaneios. Você é um homem de corpo aberto, que precisa andar em um mundo marginal, mas nunca só. Assim como as piranhas, que é o único peixe carnívoro que caça em bando -- ela é um peixe fino. Existem muitas semelhanças. A Piranha para viver em um aquário só se for só e com muito espaço livre para nadar, então melhor deixar a piranha livre, com seus dentes fortes que cortam fácil fácil a linha dos pescadores.

Vá. Crie.


Beijos,
Aline.


De: patriciagalvao@yahoo.com
Assunto: Re: voltar
Data: 19 de janeiro de 2010 23h49min8s CET
Para: contato@wagnerschwartz.com

oi querido

sei que pra vc é bom estar lá e cá
mas as vezes sinto que vc esta melhor lá do que cá...
não sei parece que vc esta mais criativo quando esta por lá...
pensei que poderia ser a questão da casa
mas aí vc também nao tem sempre
tem agora,

não sei se concordo com vc
sobre ser util
util certamente vc é aqui,
mas nunca fica pra saber se isso se concretiza
acho que no seu corpo é importante estar ai mas "estar" aqui de certa maneira
pois vc pouco esta aqui mesmo

as possibilidades de trabalho aparecem
quando vc dá um tempo pra elas aparecerem
senão é turismo

posso estar falando isso um tanto pelo desejo de vc
mas é um pouco do que eu vejo
porque mostrar algo para os que estão aí?
sei lá....

O Texto do piranha não li ainda, mas agora que estou aqui sozinha vou ler e te mando noticias...


beijos,
pagu

Assunto: Re: voltar
De: contato@wagnerschwartz.com
Data: 20 de janeiro de 2010 17h30min4s CET
Para:
patriciagalvao@yahoo.com
Cc: mdeandrade@hotmail.com


lá e cá.
acho q a gente precisa definir isso.

lá = europa?
cá = brasil?
(quando q essa definição espacial muda? ela é flexível, ou não?)

na questão de espaço geográfico ela tem em si uma grande diferença.
na questão de espaço afetivo, um tanto quanto, mas nada nesse campo é estático.
na questão nacionalista, eu não quero q haja nenhuma diferença,
quero (por isso a piranha existe) é eliminar esse discurso do meu corpo.

quando se ganha um nome como o meu
quando se nasce em família com descendentes blá blá blá
a gente toma um pedaço de algum lugar
por empréstimo ou por conveniência política (esse último caso é o meu).

na realidade ganhei esse nome
pq um monte de alemão pousou nas terras brasileiras
e continuam ali, reproduzindo suas igrejas.

o q vejo na gente
em mim ou em qualquer outro q tem descendência clara ou não,
é q somos um brasil cheio de características espalhadas por todo o lugar do mundo,
somos uma nação mundializada. então, as questões de biopolítica, para nós,
são questões muito antigas, q não precisamos ler. a gente já entendeu
q as coisas só acontecem no coletivo, na produção de singularidades. (mas nem sempre a gente aplica isso em decisões comuns, em escolhas -- uma pena).

o q vc tocou no último email em relação ao turismo, eu descordo,
pq não faço turismo em lugar nenhum. essa palavra me irrita profundamente,
pq ela reserva toda a perversidade q a gente encontra lá ou cá.
o turismo é reservado para uma população que tem dinheiro,
que pode gastar e por isso pode comprar objetos ou pessoas, sem distinção.
não é meu caso.

mas a questão da criatividade, sim, esse é meu caso
e acho q vc tocou num ponto nevrálgico, pagu.
eu preciso estar em lugares aonde me sinta criativo
e até agora eu me sinto assim quando estou em são paulo,
quando estou em paris.

em berlim, por exemplo, a criatividade não chega,
mas a normatividade em relação à qualquer coisa...
mesmo q existam pessoas q eu ame muito por lá.

então eu acho
q a ponte para esse segredo
para a crise do aonde estou, aonde vou,
esse lugar nômade,
é pensar mesmo quais são as circunstâncias que me
ajudam a pensar, a refletir sobre as questões artísticas
q para mim são as mais sérias (em qualquer momento),
as questões da tradução:
e essa questão independe, geograficamente, de passaporte.
mas prescinde do deslocamento.

acredito q esteja vivendo dentro de uma cidade (dentro da cabeça) que tem tantas saídas e entradas como aquelas desenhadas pelos neurônios.
acho q quando me prendo em questões sobre casa, família, é pq estou carente, precisando descansar um pouco. pq isso também me faz falta.
muitas coisas me faltam, mas outras tantas eu encontro respostas nos encontros mais solitários com a escrita, com os objetos coreográficos.

eu estou aqui.

acho q essa é a única forma de definição para qualquer coisa.
(lembrando do último espetáculo q assisti do gustavo ciríaco).

eu estou aqui.


beijos queridos,

w.



De: iarahelenas@gmail.com

Assunto: Re: texto rumos
Data: 11 de janeiro de 2010 4h33min43s CET
Para: contato@wagnerschwartz.com

Wagner
continue.
Quem sabe, a partir de agora, pensar em como pesquisar sobre as "piranhas" nossas de cada dia e as traduzir ou transduzir em imagens tri e bi dimensionais.
Pragmaticamente falando, podemos agora, desenvolver as estruturas dos atos: rio/ lago/ peixe/ canis canis/ peixe diabo/traga-nos algo novo/ a arte de comer em casa
Vou tentar começar no rio e no lago (lembro-me do texto de benjamin, sobre os narradores)
beijos
boa noite (aqui)
iara



2010/1/10 Wagner Schwartz

queridos iara, maurício, lourdinha e gabi.

eu retirei o texto inicial do blog piranha
e recomecei a escrevê-lo depois de uma intervenção da iara.
estou continuando uma escrita que me parece ainda ir longe,
preciso desenvolver melhor os conceitos
deixá-los com mais força.

hoje, por cansaço o envio para vcs sem uma revisão.

QUALQUER intervenção será bem-vinda.

aguardo ansioso um contato,
para q eu continue na produção.


ps.: esse será o texto que eu irei ler na apresentação do rumos dança 2010.

beijos,

w.




Assunto: início
De: contato@wagnerschwartz.com
Data: 10 de janeiro de 2010 17h0min28s CET
Para: mauricioleonard@hotmail.com, mgabigoncalves@gmail.com

como eu entrei em cena com uma pedra e um parangolé no itaú cultural em 2004
agora eu entro
com uma mesa e um mouse.







Assunto: novidades
De: contato@wagnerschwartz.com
Data: 24 de dezembro de 2009 12h29min10s CET
Para: donaorpheline@gmail.com

com o piranha
estou me aproximando do japão

estou estudando o ryoji ikeda http://www.ryojiikeda.com/
quero me encontrar com ele.

ali existem formas
potência sem vitimização político-latina
ou a perda de controle sobre o poder encontrado na europa.

eu posso dançar quando eu ouço o ikeda
eu posso até sonhar quando eu vejo suas instalações.

o objeto sem recados linguísticos
sem forma ocupacional
é em si
uma figura
auto reflexiva.

acho q vou atrás do jum nakao no brasil.


+ bjs,


w.



Assunto: Re: video
De: contato@wagnerschwartz.com
Data: 4 de dezembro de 2009 11h36min8s CET
Para: mauricioleonard@hotmail.com

chéri,

mas, vc acha q isso pro palco seria possível?
essa é também a idéia.
transformar o filme em algo tridimensional, lembra?



From: mauricioleonard@hotmail.com
To: mauricioleonard@hotmail.com
Subject: RE: video
Date: Mon, 7 Dec 2009 13:25:06 +0000

pois eh,

mas ao ver sua proposição,
não acho que ela exista:
sem aquele bloco preto que interrompe e silencia a visão,
sem a legenda piscando "coitado",
sem a deficiência da imagem...
sem o zoom de camêra que a senhora constrói.

penso em como recriar a ambiência do vídeo.

talvez, não seja de maneira nenhuma a mímeses do meio.
pergunto quando o real torna-se vídeo, como em Videodrome,
cronemberguiando.

tem aquele negócio da sheyla e da sthefhanie ficarem
parecendo uns avatares debéis, aquele corpo distituído de si,
meio capenga e babaca.

mas a senhora trata a coisa com uma inu-manidade que dá medo.
me lembrou algo nesse limite animal, louco, retardado,
tipo goddard em "o silêncio".

na verdade lembrei de meu texto vendo vc,
as vezes danço bêbado,
gosto do corpo não dar conta do comando,
de ficar bobeando entre uma coisa e outra.
retardamento de não ajeitar-se ao lugar,
perdido entre uma sinapse e outra,
nem um corpo nem outro.

dia desses, estava muito bêbado que enjoei da cerveja.
olhei adiante e vi uma lata de lixo enconstada no canto escuro e
coberta por um saco plástico preto.
tentei enfiar a garrafa dentro do cesto, mas ela estava cheia pensei,
porque de fato não conseguia fazer a garrafa entrar e
olha que eu tentei vááááárias vezes.

fui até uma outra lixeira vazia e joguei a garrafa.
minutos após veio um moço me agarrou pelo pescoço
e me disse bravo, olhando nos meus olhos:
- porque vc estava tentando enfiar uma garrafa em mim?hein?

a minha maior perplexidade na hora, era porque eu não podia contar a
verdade para o moço:

- cara confundi vc com uma lata de lixo...

dei uma desculpa possível: - cara estou completamnete fora de mim.

beijos mao.



De: boliveiralou@triang.com.br

Assunto: Re: ai ou aí, o projeto em anexo
Data: 1 de dezembro de 2009 20h54min57s CET
Para: contato@wagnerschwartz.com

wagner,

suas idéias em processo são tão férteis que as colheitas serão fartas para você e para os que estarão refletindo e, ao mesmo tempo, fruindo o seu trabalho.
e não perca, também, esta linguagem clara, concisa para o receptor-público, quando fizer a futura divulgação de "piranha".

você dá pra gente esperança na arte, mesmo sangrando como a piranha me vem...
e você se encontrando, aonde tenha que ir.
é isso, wagner.

orgulho, preenchimento de te ver na busca, na busca e nos encontros.
carinho
lou



um presente, para você...‏
De:andrea bardawil (andreabardawil@gmail.com)
Enviada:domingo, 15 de novembro de 2009 23:56:42
Para: wagnerschwartz@hotmail.com

Meu querido,
já faz tempo que passeio pelo teu blog e penso em escrever. Aí me digo: mas preciso ler tudo, que tem muita coisa para compartilhar aqui. E não escrevo! Esta semana, relendo muito Suely, lembrei demais de você. E te envio dois textos recentes que recebi. Talvez você já tenha, mas enfim...é uma forma de dizer: estou te acompanhando. já, já chego perto.
abraços,
andréa

(textos no fim da página)


Assunto: the devil and daniel johnston
De: contato@wagnerschwartz.com
Data: 13 de novembro de 2009 1h1min47s CET
Para: danilo.viana@gmx.de
Cco: mgabigoncalves@gmail.com

querido,

eu ouvia a música speedy motocycle
quando estava sozinho no meu quarto em uberlândia.
era uma gravação feita por yo la tengo,
tinha a voz de um menino na rádio
cantando pelo telefone
em alguma parte do mundo.

eu não sabia quem poderia ser daniel johnston.
eu não sabia que deus também tinha tirado seu sossego
e que o diabo tinha lhe dado um sobrenome.

obrigado por me ajudar a revisitar
um passado recente, 1996,
em que as coisas começaram a fazer sentido pra mim.

o filme foi difícil de ser assistido,
apesar de ver em daniel
a figura de um amigo,
de alguém que também
esteve na mesma gangorra.

true love will find you in the end.


w.





RE: THEN‏
De: wagner schwartz (wagnerschwartz@hotmail.com)
Enviada: quinta-feira, 5 de novembro de 2009 14:34:45
Para: fabricia martins (fabriciacmartins@hotmail.com)

não, f.
aqui não tem espaço para delicadeza.
mas é aonde posso investir nesse momento.

estou pensando agora em como fazer para diminuir ainda mais as minhas coisas.
estou diminuindo os objetos. eles são muitos agora. e precisam diminuir, senão a pesquisa não acontece, senão a piranha não pode existir.

hoje eu estou sem muita inspiração para escrever,
mas o retorno das coisas q vc anda dizendo sobre minha pesquisa
está sendo registrado. mesmo.

espero q vc também esteja se apoiando em seu trabalho.
ele também merece uma força de carinho.

daqui,

w.




From: fabriciacmartins@hotmail.com
To: wagnerschwartz@hotmail.com
Subject: RE: THEN
Date: Tue, 3 Nov 2009 20:42:10 +0000

oi w,
a vida em berlin esta na medida do carinho e da delicadeza que você precisa para viver? você tem amigos ai, eu suponho. com quem você esta morando w? sobre a lentidao das coisas, querido w, quando tive a "experiencia" do seu blog eu pensei na gente se conhecendo em 2001... e olhando tudo me parece que você fez um deslocamento enorme sempre falando do mesmo lugar mas sempre em perspectivas diferentes e essas cada vez mais abrangentes. isso é enorme. isso é maduro. isso é custoso de fazer. você fez. a questao da marginalidade, da falta de recursos, de definiçoes, da invisibilidade é seu inferno e seu céu. se você me permite tantas divagaçoes sobre a sua pessoa... eu me extendo : nao permita essa maquina de te mastigar, é você a piranha. cuide de você piranha, com carinho. o resto encaminha por si so. durma todas as horas que forem necessarias e se for possivel antes da angustia do fim do dia começar medite. se de todo nao conseguir, xxxxxxxxxxxxxxxxxxx. nao sei se é a melhor coisa a fazer mas é o que tenho feito. mas nao tudo. tem mais : faço muito yoga agora também. tem dias que so de juntar as maos atras das costas me faz chorar. mas é bom. as coisas vao saindo. e me sinto em casa, a casa é o corpo, né? te cuida. promete? depois do meu M1 meu engajamento na faculdade basculou. produzir um documento é também uma chamada na xinxa. até entao era "aluna"... agora eu me debati com um jure, face a face. antes era un entretenement... quase. essa constataçao é um alivio e um stress. vamu la. força na peruca. f.


From: wagnerschwartz@hotmail.com
To: fabriciacmartins@hotmail.com
Subject: RE: THEN
Date: Tue, 3 Nov 2009 15:21:33 +0000

oi fa.

obrigado pelas coisas q vc disse do blog, f. fico feliz em ler isso. a coisa está tomando corpo, mas com aquela lentidão de sempre.
essa situação mediúnica...

então é esperar.

vou ver seu vídeo em breve. com calma. fora dessa nóia berlim.

bjs,


w.



From: fabriciacmartins@hotmail.com
To: wagnerschwartz@hotmail.com
Subject: THEN
Date: Fri, 30 Oct 2009 21:24:47 +0000

w,
piranha é tudo. nao é que estou surpreendida. pelo contrario, vindo de você nao poderia esperar outra coisa. mas é que justamente tô vendo a COISA. merci. a partir de agora virei uma leitora assidua do seu blog. e esse espaço de dialogo é indéniable: assisti uma aula no departamento de philo. se um dia você estiver afim, éric lecerf "qu'est ce qui c'est un métier". os seminarios sao quinzenais. sextas-feiras. a cada seminario ele faz uma reprise do que foi falado no anterior. hoje foi marx e proudon. bafao. da sempre pra pegar o fio da meada. acabei de vir do p.a.f. du jan ritsema. fiquei 8 dias. fiz uma "partitura" e uma performance por dia enquanto estive la. performei pra camera. antes performava para os amigos de route (o thiago e a marcela donato). gostaria que você visse. f.


Cássia Nunes disse...

fiquei pensando na bílis negra da piranha...
"Jean Bodin, filósofo francês do século XVI, desenvolveu a teoria que os povos do norte têm como líquido dominante da vida o fleuma, enquanto os do sul são dominados pela bílis negra. Em decorrência disto, os nórdicos são fiéis, leais aos governantes, cruéis e pouco interessados sexualmente; enquanto os do sul são maliciosos, engenhosos, abertos, orientados para as ciências, mas mal adaptados para as atividades políticas."(Roque Laraia, Cultura um conceito antropológico)

14 de Outubro de 2009 17:08


piranha censurada‏
De: dona orpheline/sheila ribeiro (donaorpheline@gmail.com)
Enviada: sexta-feira, 16 de outubro de 2009 4:44:38
Para: wagner schwartz (wagnerschwartz@hotmail.com)


não consigo acompanhar exatamente como gostaria a porra da piranha, pq aqui na china quase td do blog é censurado.


De: donaorpheline@gmail.com
Assunto: Re: piranha é um peixe voraz
Data: 17 de setembro de 2009 20h27min52s GMT-03:00

vc conhecia?

gosto tb das percussõeszinhas no começo.
a meta comunicação é demais nessa música...

pq tem essa coisa bem latina e tb a incerteza na brincadeira..

piranha é isso... não não
é isso... não não..
é isso...

De: julietadosespiritos@gmail.com
Assunto: Re: piranha é um peixe voraz
Data: 17 de setembro de 2009 20h27min52s GMT-03:00

Piranha e perdão é uma combinação e tanto!
Nunca pensaria nela.

Gostei sobretudo do lado arte povera.

De: Mauricio Leonard
Data: Wed, 2 Sep 2009 01:39:20 +0000
Para: Wagner Schwartz
Assunto: Escamas

w,

essa noite eu tive uma visão.
pensava sobre escamas da piranha na minha insônia:

veio essa imagem....pra ser pensada como vídeo:
conto pra vc:

um corpo nu em um ambiente hostil,
muita neve ou uma séria adversidade ambiental ou social.
um monumento.

ela nua fotografa partes do que vê com uma câmera polaróide,
pensei em um manual dos trópicos,
cheios de coqueiros e frutas, ela fotografa o manual,
cola as fotos com fitas adesivas sobre seu corpo,
como um abrigo para si (as frutas são pura legenda).

as escamas vão revelando-se aos poucos,
recobrem seu corpo com uma realidade fílmica,
paisagem estrangeira dentro da paisagem estrangeira,
formam uma veste, mas não vi direito, no delírio, a forma...
ela passa batom nos lábios e, como um cachorro, enterra a câmera na neve.
espera, enquanto as fotos vão surgindo como inflamação epidérmica.

mao.

meu pai sempre me falava da resistência da piranha,
mesmo ao soltá-la da rede ou do anzol era preciso ter cuidado,

- ela não está morta ainda Maurício, dizia ele.
- olha no olho dela, não é de peixe morto, é outra coisa, meu filho... olho do diabo.

meu amigo olhando o site, disse assim: piranha barraqueira?
é um negócio sobre a favela?

aí, me sobreveio essa nova paisagem brasileira que
contracena com a idéia tropicalista. do exótico de violência
a que se pode submeter: por aventura, por paixão ou por sexo ou...

pista 1:
seria a piranha o barracão destroçado da mangueira?
humm, estou prestes a descobrir alguma coisa...
vou guardar o mistério, para ele se clarear em samba.



Textos de Suely Rolnik

1.

Furor de arquivo

Uma verdadeira compulsão de arquivar tomou conta de parte significativa do território globalizado da arte nas duas últimas décadas – de investigações acadêmicas a exposições baseadas parcial ou integralmente em arquivos, passando por acirradas disputas entre coleções pela aquisição dos mesmos. Sem dúvida, isto não é um mero acaso.

Perguntar-se pelas políticas do inventário se faz necessário já que são muitos os modos de abordar as práticas artísticas que se quer inventariar, do ponto de vista não só técnico, mas também e sobretudo de sua própria carga poética. Refiro-me à capacidade do dispositivo proposto de criar as condições para que tais práticas possam ativar experiências sensíveis no presente, necessariamente diferentes das que foram originalmente vividas, mas com o mesmo teor de densidade crítica. Problematizar este aspecto, no entanto, implica em pelo menos dois outros blocos de perguntas. O primeiro refere-se ao tipo de poéticas inventariadas: Que poéticas são essas? Teriam elas aspectos em comum? Estariam ela situadas em contextos históricos similares? Em que consiste inventariar poéticas e em que isso se diferenciaria de inventariar apenas objetos e documentos? O segundo bloco refere-se à situação que engendra este furor de arquivar: o que causa a emergência deste desejo no atual contexto? Que políticas de desejo movem as diferentes iniciativas de inventário e seus modos de apresentação?

Vou propor algumas pistas de resposta a estas perguntas, pensando principalmente a partir de duas experiências que vivi recentemente. A primeira é o projeto de constituição de um arquivo de 65 filmes de entrevistas em torno da obra de Lygia Clark e do contexto onde esta teve lugar, o qual realizei entre 2002 e 2006; a intenção consistiu em ativar a memória da experiência sensível promovida pelas proposições da artista em sua contundência poética-política e, mais amplamente, pelo meio em que esta tem sua origem e condição de possibilidade. A segunda é minha intensa participação, nos últimos doze anos, do diálogo internacional que vem se travando em torno deste campo problemático.

Pois bem, há um objeto privilegiado por tal ânsia de arquivo: trata-se da ampla variedade de práticas artísticas agrupadas sob a designação de ‘crítica institucional’, a qual se desenvolve pelo mundo ao longo dos anos 1960 e 70 e que transforma irreversivelmente o regime da arte e sua paisagem. Naquelas décadas, como sabemos, artistas em diferentes países tomam como alvo de sua investigação o poder do assim chamado “sistema da arte” na determinação de suas obras: dos espaços físicos a elas destinados e a ordem institucional que neles toma corpo, às categorias a partir das quais a história (oficial) da arte as qualifica, passando pelos meios empregados e os gêneros reconhecidos, entre outros tantos elementos. Explicitar, problematizar e deslocar-se de tal determinação passam a orientar a prática artística, como nervo central de sua poética e condição de sua potência pensante – na qual reside a vitalidade propriamente dita da obra. Desta vitalidade emana o poder que terá uma proposta artística de ativar a sensibilidade daqueles que a vivenciam ao concentrado de forças que nela se presentifica e, por extensão, às forças que agitam o mundo à sua volta. Se esta ativação se concretizará ou não, é uma questão que extrapola o horizonte da arte, posto que isso depende de uma complexa trama de que são feitos os meios por onde circulará tal proposta e o jogo de forças que delineia seu atual diagrama.

Mas não são quaisquer práticas artísticas realizadas no seio deste movimento nos anos 1960-70 que a compulsão de arquivar abraça, mas principalmente aquelas que se produziram fora do eixo Europa Ocidental / EUA. Tais práticas teriam sido engolfadas pela História da Arte canônica estabelecida neste eixo, a partir da qual se interpreta e categoriza a produção artística produzida em outras partes do planeta – isso, quando estas fazem sua aparição no cenário internacional da arte, o que não é óbvio. No entanto, com o avanço do processo de globalização, de algumas décadas para cá, vem se rompendo a idealização da cultura hegemônica pelas demais culturas até então sob seu domínio; há uma quebra do feitiço que as mantinha cativas e obstruía o trabalho de elaboração de suas próprias experiências a partir das singularidades das mesmas e de suas políticas de elaboração e produção de conhecimento.

É toda uma concepção de modernidade que começa a esfarelar-se: transmuta-se subterraneamente a consistência de seu território, modifica-se sua cartografia, ampliam-se seus limites. Um processo de reativação das culturas até então sufocadas vem se operando na resistência à construção da globalização comandada pelo capitalismo financeiro. É verdade que tal resistência é obra de diferentes tipos de força que se manifestam em diferentes políticas de criação: desde os fundamentalismos que inventam uma identidade originária e nela se fixam (negando-se, portanto, à relação com o outro e ao processo de globalização), até toda espécie de invenção do presente a partir das distintas memórias culturais e seus atritos e tensões implicados na construção da sociedade globalizada. Um processo que vem ocorrendo não só nos três continentes colonizados pela Europa Ocidental (América, África e Ásia), mas também nas diferentes culturas sufocadas no interior do próprio continente europeu. Entre estas salientemos as culturas mediterrâneas que nos concernem mais diretamente, em especial as da Península Ibérica onde operou-se o aniquilamento da cultura árabe-judaica através de três séculos de inquisição.

Vale a pena nos determos neste exemplo para evocar três aspectos históricos envolvidos neste processo. O primeiro é a concomitância entre a escravidão de boa parte do continente africano pelos então nascentes Espanha e Portugal e a inquisição em seu próprio interior que perseguiu e expulsou árabes e judeus; ambos fenômenos ocorreram ao longo de três séculos (XV a XVII), no contexto da conquista e colonização dos demais continentes pela Europa Ocidental. Apesar de a prática da inquisição ter início no século XII e, mais institucionalmente, no século XIII (com a bula Licet ad capiendos, promulgada pelo Papa Gregório IX em 1233), é no século XV que ela se torna uma das mais tenebrosas manifestações da crueldade humana, tal como ficou registrada no imaginário coletivo. É na Península Ibérica que isso acontece com a introdução de um Tribunal de Santo Ofício pelos reis de Castela e Aragão, que submeteram o poder da fé ao poder régio, abolindo as regras que delimitavam o exercício da violência. Se até então, a tortura era uma prática esporádica e controlada, aplicável apenas a alguns casos e após julgamento, neste contexto ela passa a ser uma prática corriqueira, marcada por uma perversão sem limites.

O segundo aspecto histórico, é o fato que as culturas expulsas da África como da Península Ibérica estão inscritas na memória de nossos corpos latino-americanos, pois assim como os africanos foram trazidos como escravos, pesquisas históricas recentes atestam que grande parte dos árabes e judeus perseguidos refugiaram-se na América recém-conquistada (são desta origem, 80% dos portugueses que colonizaram o Brasil, bem como 80% dos espanhóis que colonizaram o México; enquanto que na Espanha são apenas 40% os que tem esta ascendência).
O terceiro e último aspecto se deduz dos dois anteriores: a modernidade ocidental funda-se sobre o recalque das culturas que compõem sua alteridade, inclusive em seu próprio interior, por meio de diferentes procedimentos. Em sua fase neoliberal, o procedimento não mais consiste em impedir a ativação destas culturas; pelo contrário, trata-se de incitá-las, mas para incorporá-las a seus desígnios, destituindo-as de suas potências singulares e denegando os conflitos que esta construção necessariamente implicaria. É esta modernidade que hoje se encontra na berlinda. Sua incidência na política de produção de subjetividade e de criação/pensamento é o que nos Interessa problematizar aqui.

Pois bem, o furor de arquivo aparece precisamente neste contexto, marcado por uma guerra de forças pela definição da geopolítica da arte, a qual por sua vez situa-se no contexto de uma guerra mais ampla, em torno da definição de uma cartografia cultural da sociedade globalizada. Mas, há que precisar melhor quais práticas artísticas produzidas nos anos 1960-70 fora do eixo Europa Ocidental / USA impulsionam e alimentam este furor. Sem dúvida, são especialmente cobiçadas as que surgiram na América Latina e em outras regiões que, como nosso continente, encontravam-se então sob regimes ditatoriais (é o caso, por exemplo, da Europa do Leste e da própria Península Ibérica). Nestas situações, o movimento em questão ganha matizes singulares que se apresentam sob formas variadas. Um aspecto, no entanto, é recorrente: agrega-se o político às dimensões do território institucional da arte que passam a ser problematizadas.
O foco da compulsão de arquivar colocado nestas práticas situa-se num campo de forças que disputam o destino de sua retomada no presente. Um variado espectro que vai de iniciativas que pretendem ativar sua potência poético-política até aquelas movidas pelo desejo de ver tal potência definitiva e irreversivelmente desaparecida da memória de nossos corpos. É nestas práticas que vou concentrar a análise, movida pela urgência de nos situarmos mais precisamente neste terreno, de modo a afinar nossas intervenções teórico-clínicas em sua paisagem.

Despertando da anestesia

Comecemos por assinalar que o caráter político de tais práticas não as constitui como uma espécie de militância a veicular conteúdos ideológicos, como poderia parecer numa primeira aproximação. No entanto, tal interpretação ficou estabelecida pela História canônica da Arte, a partir de meados dos anos 1970, com certos textos e exposições que se tornaram emblemáticos no mainstream em que se definem os contornos deste território, a partir dos quais designou-se tais práticas como ‘arte conceitual política’ ou ‘ideológica’. (Não por acaso, todos estes textos e exposições foram produzidos nos EUA e na Europa Ocidental, onde esta experiência não havia sido vivida). Esta interpretação não é nada neutra e veremos porque.

O que faz os artistas neste contexto agregarem o político à sua investigação poética é o fato de que os regimes ditatoriais então vigentes em seus países incidem em seu corpo de modo especialmente agudo, já que atingem seu próprio fazer, os levando a viver o autoritarismo na medula de sua atividade criadora. Se o poder ditatorial se manifesta, mais obviamente, na censura aos produtos do processo de criação, bem mais sutil e nefasto é seu impalpável efeito de inibição da própria emergência deste processo – ameaça que paira no ar pelo trauma inexorável da experiência do terror. Este leva a associar o impulso da criação ao perigo de sofrer a violência do Estado, que pode ir da prisão à tortura e chegar até a morte. Tal associação inscreve-se na memória imaterial do corpo: memória física e afetiva da sensações de dor, medo e humilhação (distinta, embora indissociável, da memória da percepção das formas e dos fatos, com suas respectivas representações e as narrativas que as enlaçam). Desentranhá-la é uma tarefa tão sutil e complexa quanto o processo que resultou em seu recalque (podendo inclusive prolongar-se por trinta anos ou mais e só plasmar-se de fato na segunda ou terceira geração).

É evidente que a questão do político se coloca igualmente na época, de distintas maneiras, nas práticas artísticas que se fazem nos EUA e na Europa Ocidental; porém, nestes contextos ela se refere a situações exteriores ao terreno da arte (a Guerra do Vietnã, por exemplo) que, muitas vezes, aparecem em sua obra representadas ou ilustradas, funcionando como denúncia. O que faz a diferença das propostas mais contundentes que se inventam na América Latina no período é que o político se coloca nas entranhas da própria poética. Encarnada na obra, a experiência onipresente e difusa da opressão se torna sensível num meio em que a brutalidade do terrorismo de Estado provoca como reação defensiva a cegueira e a surdez voluntárias, por uma questão de sobrevivência (ex : Desvio para o Vermelho de Cildo Meireles). Esse tipo de ação e seus possíveis efeitos são de uma ordem totalmente distinta das ações sócio-educativas de ‘inclusão’ ou das ações pedagógicas e/ou doutrinárias de conscientização e transmissão de contéudos ideológicos, próprias da figura tradicional do militante.

As intervenções artísticas que afirmam a força política que lhes é inerente seriam aquelas que se fazem a partir do modo como as forças do presente afetam o corpo do artista; é esta qualidade de relação com o presente que tais ações podem eventualmente incitar em seus ‘perceptores’. Isso não quer dizer que, neste caso, a pesquisa formal torna-se secundária ou até dispensável. Pelo contrário, aqui o rigor formal da obra em sua performatização é mais essencial e sutil do que nunca, pois ele é indissociável de seu rigor enquanto atualização da sensação que tensiona. E quanto mais precisa sua linguagem, mais pulsante sua qualidade intensiva e maior seu poder de interferência no meio onde circula – poder de liberar as imagens de seu uso perverso. Ativam-se outros modos de relação com as imagens, outras formas de percepção e recepção, mas também e sobretudo, de invenção e expressão. Estas podem implicar em novas políticas da subjetividade e sua relação com o mundo – ou seja, novas configurações do inconsciente no campo social, as quais redesenham sua cartografia.

Em outras palavras, o que define o teor político deste tipo de prática é aquilo que pode suscitar nas pessoas que são por ele afetados em sua recepção: não se trata da consciência da dominação e da exploração (sua face extensiva, representacional, macropolítica), mas sim da experiência deste estado de coisas no próprio corpo (sua face intensiva, inconsciente, micropolítica). Esta experiência pode intervir no processo de subjetivação exatamente no ponto onde este tende a tornar-se cativo e a despotencializar-se.

O que se ganha é uma maior precisão de foco, que em compensação se turva quando tudo que diz respeito à vida social volta a se reduzir exclusivamente a uma leitura de sua dimensão macropolítica e faz dos artistas que atuam neste terreno designers gráficos e/ou publicitários do ativismo. É verdade que este tipo de opção caracterizou certas práticas nas mesmas décadas de 1960-70 (e ainda hoje), as quais poderiam efetivamente ser qualificadas como ‘políticas’ e/ou ‘ideológicas’. Se este tipo de ação é sem dúvida importante, ele deve no entanto ser distinguido das ações artísticas que trazem o político como aspecto de sua própria poética e que, por isso, atingem potencialmente a dimensão sensível da subjetividade e não sua consciência. Aqui situa-se o efeito mais grave do infeliz equívoco cometido pela ‘História da Arte’: ao generalizar a caracterização para o conjunto das ações artísticas propostas naquelas décadas na América Latina, perdeu-se a essência da singularidade das ações aqui focadas e o deslocamento que operaram na relação entre o poético e o político.

Mas o lapso torna-se ainda mais nefasto quando adotado como paradigma pelos próprios historiadores e críticos latino-americanos, seguindo a tradição puramente colonial. No Brasil, os que assumiram esta posição tendem a rejeitar tudo o que se produz na terceira geração de crítica institucional no terreno artístico, e a estigmatizá-lo de ‘não arte’. Isso sustenta e justifica sua tendência a denegar as turbulências do presente globalizado e o trabalho requerido para identificar e elaborar as questões que aí se colocam, tal como se manifestam singularmente em cada contexto. Em outras palavras, o equívoco da História institucional da Arte é utilizado por tais críticos e historiadores para alimentar uma espécie de surdez defensiva às discussões que vêm se travando em escala internacional, especialmente à nova aliança que vem se estabelecendo entre o poético e o político (particularmente no terreno da arte). O efeito é a omissão da responsabilidade de seu trabalho intelectual na construção do presente. Mais preocupante é a inibição que o poder de tal posição provoca na produção artística e discursiva das novas gerações.

Neste contexto, estão dadas as condições para retomar o combate pela superação da cisão entre micro e macropolítica que se reproduz na cisão entre as figuras clássicas do artista e do militante. Esta se encontra na base do conflito que caracterizou a conturbada relação de amor e ódio entre movimentos artísticos e movimentos políticos ao longo do século XX, responsável em parte pelas frustrações de tentativas coletivas de emancipação (a começar pela revolução russa). Mas o que diferenciaria exatamente ações micro e macropolíticas?

Micro & macropolítica

Antes de responder a esta pergunta, cabe assinalar que macro e micropolítica compartilham um mesmo ponto de partida: a urgência de enfrentar as tensões da vida humana nas situações em que sua dinâmica se encontra interrompida ou, no mínimo, esmaecida. Ambas têm como alvo a liberação do movimento vital de suas obstruções, o que faz delas atividades essenciais para a ‘saúde’ de uma sociedade. Refiro-me à afirmação da força inventiva de mudança, quando a vida assim o exige como condição para voltar a fluir. Entretanto são distintas as ordens de tensões que cada um destes modos de aproximação permite vislumbrar, assim como as manobras deste enfrentamento e as faculdades subjetivas que elas envolvem.

A operação própria da ação macropolítica consiste em inserir-se nas tensões que se produzem entre pólos em conflito na distribuição desigual dos lugares estabelecidos pela cartografia dominante num dado contexto social (conflitos de classe, de raça, de etnia, de religião, de gênero, etc). São relações de dominação, opressão e/ou exploração onde a vida daqueles que se encontram no pólo dominado tem sua potência diminuída, por se converterem em objeto daqueles que se encontram no pólo dominante e que os instrumentalizam (ex: a força de trabalho de uns usada para acumulação de mais valia de outros). A ação macropolítica inscreve-se no coração destes conflitos, num combate por uma redistribuição de lugares e seus agenciamentos, visando uma configuração social mais justa.

Já a operação própria à ação micropolítica consiste em inserir-se na tensão da dinâmica paradoxal entre, de um lado, a cartografia dominante com sua relativa estabilidade e, de outro, a realidade sensível em constante mudança – produto da presença viva da alteridade como campo de forças que não páram de afetar nossos corpos. Neste processo, a cartografia em curso torna-se demasiado estreita ou inadequada, o que cedo ou tarde acaba provocando colapsos de sentido. Estes se manifestam em crises na subjetividade que nos forçam a criar, de modo a dar expressividade para a realidade sensível que pede passagem, alargando a percepção e redesenhando nossos contornos. A ação micropolítica inscreve-se no domínio performativo, não só artístico (visual, musical, literário ou outro), mas também teórico e/ou existencial.

É evidente que o que acabo de afirmar só faz sentido se entendermos a produção tanto de conceitos quanto de formas de existência (sejam elas individuais ou coletivas) como atos de criação, tal como os que se efetuam na arte. Em qualquer uma destas ações micropolíticas tendem a se produzir mudanças irreversíveis na cartografia vigente. É que a pulsação destes novos diagramas sensíveis, ao tomar corpo em criações artísticas, teóricas e/ou existenciais, as tornam portadoras de um poder de contágio potencial de seu entorno. Como escreve Guattari em 1982, em Micropolítica. Cartografias do Desejo, livro que fizemos em co-autoria: « Quando uma idéia é válida, quando uma obra de arte corresponde a uma mutação verdadeira, não é preciso artigos na imprensa ou na TV para explicá-la. Transmite-se diretamente, tão depressa quanto o vírus da gripe japonesa » (que hoje seria o da gripe suína). Ou em outro momento do mesmo livro: « Considero a poesia como um dos componentes mais importantes da existência humana, não tanto como valor, mas como elemento funcional. Deveríamos receitar poesia como se receitam vitaminas. » Se o livro fosse escrito hoje, talvez Guattari tivesse nuançado o entusiasmo contido nestes comentários, lembrando que nada garante que o vírus crítico de uma idéia vá de fato proliferar feito epidemia, nem que as vitaminas do poético consigam de fato curar a anestesia ambiente. O que pode a arte é lançar o virus do poético no ar. E o que pode a clínica, é insistir que a arte é a mais poderosa das vitaminas. E isso não é pouca coisa.

Em suma: do lado da macropolítica, estamos diante das tensões dos conflitos no plano da cartografia do real visível e dizível (domínio das estratificações que delimitam sujeitos, objetos, bem como a relação entre eles e suas respectivas representações); do lado da micropolítica, estamos diante das tensões entre este plano e aquilo que já se anuncia no diagrama do real sensível, invisível e indizível (domínio dos fluxos, intensidades e devires).

O primeiro tipo de tensão é acessado sobretudo pela percepção e o segundo, pela sensação. Explico-me brevemente: a percepção aborda a alteridade do mundo como mapa de formas que associamos a certas representações de nosso repertório e as projetamos sobre aquilo que estamos apreendendo, de modo a lhe atribuir sentido. Enquanto que a sensação aborda a alteridade do mundo como diagrama de forças que afetam nosso corpo em sua capacidade de ressoar. Neste processo, o outro integra-se em nosso corpo como molécula de seu tecido sensível e se torna uma presença viva a nos produzir inquietação por colocar em crise este mesmo repertório. É precisamente esta tensão o que nos força a pensar/inventar uma obra de arte, um conceito, um modo de existência ou outra manifestação onde ela se faça presente. Aqueles que encontram qualquer uma destas criações ganham uma oportunidade de encarar tal tensão e, talvez, de ir mais longe ainda, ativando sua própria potência de invenção.

Criação cafetinada

A figura clássica do artista costuma estar mais do lado da ação micropolítica e a do militante do lado da macropolítica. Se é verdade que esta separação já começa a dissolver-se com as vanguardas modernistas da América Latina, tal dissolução se intensifica e se expande nas práticas artísticas da região nos anos 1960-70. Esboça-se neste contexto um composto dos dois tipos de ação sobre a realidade, não só na arte, mas na política da existência. É este aspecto crucial da produção artística do período no continente que parece ter escapado à história da arte.

Já de saída, ‘esta’ história não foi feliz ao qualificar tais propostas como ‘conceituais’: mesmo quando lhes outorga uma autonomia relativamente às ações assim categorizadas nos EUA, o termo encobre a singularidade e a heterogeneidade das mesmas. Em todo caso, ainda que as mantenhamos sob o chapéu do ‘conceitualismo’, é inaceitável rotulá-lo de ‘ideológico’ ou ‘político’ para marcar supostamente sua diferença. É que se, de fato, encontramos nestas propostas um germe de integração entre o político e o poético, vivenciado e atualizado em ações artísticas bem como na vida cotidiana, mas todavia frágil e impossível de nomear, chamá-lo de ‘ideológico’ ou ‘político’ é um modo de denegar o estado de estranhamento que esta experiência radicalmente nova produz em nossa subjetividade. A estratégia é simples: se o que aí experimentamos não é reconhecível na arte, então para nos proteger do incômodo ruído, o categorizamos na política e tudo permanece no mesmo lugar. O abismo entre micro e macropolítica se mantém; aborta-se o processo de sua fusão e, portanto, aquilo que está por vir (no melhor dos casos, o germe permanece incubado). Ora, o estado de estranhamento constitui uma experiência crucial porque, como anteriormente sugerido, ele é o sintoma das forças da alteridade que reverberam em nosso corpo e exigem criação. Ignorá-lo implica o bloqueio da potência pensante que dá impulso à ação artística e sua provável interferência no presente.

Tomemos o caso do Brasil. A crítica à instituição artística no país manifesta-se desde o início dos anos 1960 em práticas especialmente vigorosas e se intensifica ao longo da década, já então no bojo de um amplo movimento contra-cultural. Esta persiste mesmo após 1964, quando instala-se no país a ditadura militar e, ainda, por um breve período após dezembro de 1968, quando a violência do regime recrudesce por conta da promulgação do AI5. É exatamente nesse momento que o político agrega-se à poética da crítica institucional em curso na arte. No entanto, no início da década seguinte, o movimento começa a arrefecer por efeito das feridas das forças de criação provocadas pela truculência do regime. Muitos artistas e intelectuais são forçados ao exílio – seja por terem sido presos ou por correrem o risco de sê-lo, seja simplesmente porque a situação se tornara intolerável. Como todo trauma coletivo deste porte, conforme já mencionado, o debilitamento do poder crítico da criação estende-se por mais uma década depois da volta da democracia nos anos 1980, quando se instala o neoliberalismo no país. É verdade que uma agitação cultural tem início no bojo do movimento pelo fim da ditadura, no início dos anos 80, e prossegue ao longo da década, mas esta é ignorada pelos críticos e historiadores da arte. Só mais recentemente a força crítico-criadora da arte volta a ativar-se como movimento coletivo visível na vida pública, por iniciativa de uma geração que se afirma a partir da segunda metade dos anos 1990. Um duplo fator está na origem de tal movimento: o primeiro é que estão dadas as condições para uma retomada coletiva da vida pensante que havia sido interrompida pelo trauma; o segundo é a plena instalação do capitalismo financeiro em escala internacional, que mobiliza este tipo de interrogação na nova safra de artistas, a qual volta a problematizar a relação entre o poético e o político.

A situação favorece a retomada de um movimento tendente a superar a dissociação entre micro e macropolítica, agora com outras estratégias, já que é outro o regime de opressão e de produção de subjetividade, se comparado ao que se opera em ditaduras militares. É precisamente nesta situação que surge o desejo de inventário. É que a experiência da fusão poético-política vivida nestas práticas ficou sob esquecimento; só as conhecemos em sua exterioridade e, assim mesmo, de maneira lacunar. Sua potência disruptiva e o que esta abriu e poderia continuar abrindo em seu entorno ficaram soterrados por efeito do trauma das ditaduras. Neste estado de coisa impõe-se a urgência de ativar esta potência, libertando-a de sua interrupção defensiva, de maneira a viabilizar sua continuidade em função das forças que pedem passagem em nosso presente. Esta é a política de desejo que, de diferentes maneiras, move uma série de iniciativas geradas pelo furor do inventário.

No entanto, esta mesma situação mobiliza uma política de desejo diametralmente oposta: no momento em que tais iniciativas reaparecem, o sistema global da arte as incorpora imediatamente para transformá-las em fetiches, congelando os germes de futuro que mal começavam a reaquecer. Se o movimento de pensamento crítico que se deu intensamente nos anos 1960 e 70 na América Latina foi brutalmente interrompido naquele período pelo regime ditatorial que preparou o país para a instalação do neoliberalismo, no momento mesmo em que sua memória começa a reativar-se este processo é novamente interrompido, agora com o requinte perverso e sedutor do mercado da arte, muito distinto dos procedimentos grosseiros e explícitos das ditaduras militares. Os arquivos de tais práticas convertem-se então numa espécie de botim de guerra disputado pelos grandes museus e colecionadores da Europa Ocidental e dos USA, antes mesmo que o que estava incubado nas propostas artísticas inventariadas tenha voltado a respirar. Um novo capítulo da história não tão pós-colonial quanto gostaríamos...

Revolver, ativar, revulsionar

Ora, se o fato de vislumbrar o surgimento de uma nova figura da fusão entre o poético e o político no século XXI não é apenas um sonho datado historicamente que insistimos em sonhar, deveríamos nos perguntar: que novos problemas estariam convocando a retomada desta articulação? Que estratégias têm sido inventadas para o enfrentamento dos mesmos? Que novos personagens tomam corpo neste combate? Que alterações provocam no relevo do território da arte?

Os inventários que pretendem ativar tais poéticas, deveriam pensar-se de modo a criar condições para uma experiência da contundência crítica das mesmas no enfrentamento das questões do presente, de modo a adensar as forças de criação que nele se afirmam. Mas esse esforço nada tem a ver com o desejo de conquista de lugares mais gloriosos e/ou glamurosos do que o papel de figurantes ou mesmo de ‘sem papel’ que nos coube até aqui na história canônica da arte, escrita pela Europa Ocidental e pelos Estados Unidos. E se, diferentemente dessa vontade egóica de devir celebridade, a meta consiste em traçarmos outra(s) história(s) da arte, tampouco interessa fazê-lo se for para mantermos a mesma lógica, apenas invertendo-lhe os sinais (a ‘nossa’ história agora apresentada como paradigma universal); e menos ainda em ficarmos gozando voluptuosamente no papel de vítima, coçando a casquinha da ferida. Em compensação, se este esforço de fato vale a pena, é porque pode contribuir para ‘curar’ a interrupção da vida pensante em nossos países, causada pela superposição dos traumas das ditaduras e do estatuto do pensamento/criação sob neoliberalismo que as sucedeu. Não por acaso tal regime foi designado por vários teóricos de ‘capitalismo cultural’ ou ‘cognitivo. É que neste contexto, como sabemos, o conhecimento e a criação convertem-se em objetos privilegiados de instrumentalização a serviço da produção de capital. A reativação de tais práticas não escapa a este destino. Espero que o furor de arquivo contribua para que enfrentemos este destino – ao menos o suficiente para desobstruir o acesso a estes germes incubados de futuros soterrados, tão desejados no presente.


São Paulo, março de 2009



2.

Políticas da Hibridação
Evitando falsos problemas


Cartografias mistas de toda espécie vem sendo traçadas, ao mesmo tempo que a complexa criação dos territórios existenciais que se fazem e se desfazem em um mundo irreversivelmente globalizado. Perguntar-se se universos marcados pela hibridação, a flexibilidade, a fluidez (mais recentemente qualificados de “líquidos”) devem ser recusados ou celebrados, é falso problema: trata-se apenas da forma de nossa atualidade, a qual, como a forma de toda e qualquer realidade, se produz no embate entre as diferentes políticas de sua(s) construção(ões). É disso que pretendo tratar aqui, percorrendo a trajetória desta questão em meu próprio trabalho, no qual ela aparece pela primeira vez nos anos 1980, com a formulação do conceito de “subjetividade antropofágica” – inspirado, em parte, no Movimento modernista.

Desde então, venho retomando e reelaborando este conceito de tempos em tempos – não para “corrigi-lo”, mas para dar voz à singularidade do processo que o convoca e o constitui mais uma vez –, em função do contexto em que ele volta a ser operatório. Suas reaparições mais recentes foram mobilizadas pelo cenário da arte contemporânea que, a partir de meados dos anos 1990, tornou-se uma arena privilegiada de confronto entre as forças que delineiam a(s) cartografia(s) do presente transnacional.

Entalha-se o outro na carne

A noção de “antropofagia”, proposta pelos modernistas, remete originalmente, como sabemos, a uma prática dos índios Tupinambás: um complexo ritual de morte e devoração dos inimigos, cativos de guerra. O que em geral não sabemos, a não ser que estejamos minimamente familiarizados com os estudos antropológicos, é que este ritual podia durar meses e até anos, sendo o canibalismo apenas uma de suas etapas. Curiosamente, esta é a única (ou quase única) registrada no imaginário ocidental, provavelmente pelo horror que terá causado ao invasor europeu. E mais curiosamente ainda, esta também foi a etapa privilegiada pelos modernistas na construção de seu argumento. No entanto, outro aspecto talvez pudesse oferecer uma chave complementar para as questões abordadas pelo Modernismo – em todo caso, sem dúvida uma chave essencial para as questões que pretendo abrir aqui. Eis como a descrevem os antropólogos Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de Castro: “após ter matado o inimigo, o executor mudava de nome e era marcado por escarificações em seu corpo durante um prolongado e rigoroso resguardo”. E assim, com o decorrer do tempo, nomes iam se acumulando, a cada incorporação do confronto com um novo inimigo, acompanhados de seus respectivos desenhos entalhados na carne: e quanto mais nomes gravados em seu corpo, mais prestigiado seu portador. A existência do outro – não um, mas muitos e diversos – era assim inscrita na memória do corpo, produzindo imprevisíveis devires da subjetividade.

Obedece esta mesma lógica, o fato de que segundo os jesuítas, os Tupinambás recebiam facilmente seus ensinamentos de europeus católicos e, com a mesma facilidade, os esqueciam ou simplesmente os abandonavam. O que para os padres era “inconstância” revela na verdade a inexistência de um sentimento de si substancializado ou de uma cartografia vivida como suposta essência individual e/ou coletiva, seja ela qual for; daí o desapego e a liberdade de desfazer-se de elementos da própria cultura, absorver elementos de outras e também deixá-los de lado, quando não fazem sentido. Não por acaso, o único aspecto de sua cultura que os Tupinambás recusaram-se ferozmente a abandonar, foi a antropofagia. Aceitavam inclusive abrir mão de sua etapa canibalista, quando eram obrigados a submeter-se a esta exigência dos portugueses; mas o que eles não podiam perder em hipótese alguma era esta “técnica de memória do inimigo”, do radicalmente outro, que sustentava e garantia a “abertura para o alheio, o alhures e o além” – em suma, este ritual de iniciação ao Fora e ao princípio heterogenético da produção de si e do mundo que ele implica. Mantê-lo a qualquer custo – não seria uma forma de exorcizar o perigo de contágio pelo princípio identitário e sua dissociação do corpo que regia a subjetividade e a cultura do invasor? Como se algo neles soubesse que é fundamentalmente de tal contágio que dependeria o poder colonizador do europeu.

Ao propor a idéia de antropofagia, a vanguarda do modernismo brasileiro extrapola a literalidade da cerimônia indígena, para dela extrair sua fórmula ética, que ocupa lugar central na cultura daqueles povos e fazê-la migrar para a cultura da sociedade brasileira como um todo. A fórmula consiste na existência de uma incontornável alteridade em nós mesmos que este ritual evoca e reitera, ao inscrevê-la na memória dos corpos. Com este gesto, a presença atuante desta fórmula num modo de criação cultural praticado no Brasil desde sua fundação ganha visibilidade e se afirma como valor: a devoração crítica e irreverente de uma alteridade sempre múltipla e variável. E se agregarmos à fórmula modernista, o que nos indica a etapa do ritual indígena acima mencionada, definiríamos a micropolítica antropofágica como um processo contínuo de singularização, resultante da composição de partículas de inúmeros outros devorados e do diagrama de suas marcas respectivas na memória do corpo. Uma resposta poético-política – regada a sarcástico humor – à necessidade de afrontar a presença impositiva das culturas colonizadoras (o que torna patético seu mimetismo deslumbrado pela intelligentzia local); resposta também, e talvez sobretudo, à exigência de assumir e positivar o inexorável processo de hibridação resultante das sucessivas ondas de imigração, o qual configura desde sempre a experiência vivida no país.

Know-how antropofágico

Nos anos 1960 e 70 culmina, em vários países do Ocidente, um longo processo de absorção e capilarização das invenções do modernismo: estas transbordam o território restrito das vanguardas artísticas e culturais e tomam vulto numa ampla e ousada experimentação cultural e existencial de toda uma geração, no contexto do movimento que se designou por “contra-cultura”. Uma reação epidérmica à sociedade disciplinar, própria do capitalismo industrial, com sua subjetividade e cultura identitárias que compunham a figura do assim chamado “burguês” em sua versão hollywoodiana do pós-guerra.

Assim também no Brasil, reatualizou-se, naquele período, o ideário antropofágico da vanguarda local. Reavivado e transfigurado, este foi um aspecto crucial da originalidade deste movimento no país em diferentes campos da cultura (o Tropicalismo, mais conhecido internacionalmente, é apenas uma de suas expressões; colocar tudo sob este chapéu, é um equívoco freqüentemente cometido). Isso dava aos brasileiros um certo know-how para a experimentação de outras políticas de subjetivação, de relação com o outro e de criação que se buscava internacionalmente na contra-cultura.

Foi certamente meu intenso envolvimento com esta experiência, e a necessidade de atualizá-la em conceito de modo a integrá-la à cartografia do presente, o que me levou alguns anos depois a conceber a noção de “subjetividade antropofágica”. Assim, eu a descreveria em linhas gerais: a ausência de identificação absoluta e estável com qualquer repertório e a inexistência de obediência cega a qualquer regra estabelecida, gerando uma plasticidade de contornos da subjetividade (no lugar de identidades); uma fluidez na incorporação de novos universos, acompanhada de uma liberdade de hibridação (no lugar de atribuir valor de verdade a um universo em particular); uma coragem de experimentação levada ao limite, acompanhada de uma agilidade de improvisação na dinâmica da criação de territórios e suas respectivas cartografias (no lugar de territórios fixos com suas representações pré-determinadas, supostamente estáveis).

Utilizei este conceito pela primeira vez em 1987, em minha tese de doutorado, publicada em 1989 – exatamente o ano do fim da ditadura no Brasil e da queda do muro de Berlim. Se destaco estes fatos, não é para monumentalizar o contexto no qual tal elaboração se dá, mas pelo contrário, porque nas filigranas do diagrama que então se anunciava impunha-se nomear e reafirmar este modo de subjetivação que havíamos inventado nos anos 1960 e início dos 70, no bojo do movimento contra-cultural. É que tal modo havia sido alvo da truculência da ditadura militar ao longo dos anos 1970 e início dos 80, a qual reativara e enrijecera o princípio identitário – como sói acontecer do ponto de vista micropolítico neste tipo de regime. Alguns anos depois, em 1994, quando escrevi “Esquizoanálise e Antropofagia”, para um colóquio em torno do pensamento de Deleuze, publicado no livro Gilles Deleuze. Uma vida filosófica, ainda se fazia necessário afirmar este modo de subjetivação. Mas o que estava então em foco era a relação entre aquilo que eu designava por subjetividade antropofágica e a concepção de subjetividade que se pode extrair da obra de Deleuze e Guattari para, a partir daí, compreender a ampla recepção do pensamento destes autores no campo da clínica no Brasil (o que aliás continua vigente ainda hoje).

Em 1998, quando retomei este conceito, num ensaio encomendado para o catálogo da XXIV Bienal Internacional de São Paulo (cujo tema foi justamente a Antropofagia), já era outro o problema que eu me sentia convocada a enfrentar: a política de produção de subjetividade e cultura inventada pela geração dos anos 1960/70 vinha sendo instrumentalizada pelo capitalismo financeiro transnacional, que então se estabelecia por toda o planeta. Transformada nesta operação, tal micropolítica tornava-se dominante (daí certos autores qualificarem o novo regime de “capitalismo cognitivo” ou “cultural”). Não descreverei este processo, pois ele é amplamente tratado no texto em questão, e em vários de meus ensaios nos últimos seis anos. Embora esta mudança tivesse começado já no final dos anos 1970, na Europa Ocidental e na América do Norte e, a partir de meados dos anos 1980, na América Latina e na Europa do Leste (com a dissolução dos regimes totalitários, em grande parte engendrada pelo próprio neoliberalismo), demorou pelo menos duas décadas para que seus efeitos perversos se fizessem sentir e se colocassem como problema – como acontece com toda mudança histórica de tal envergadura. Só agora tornava-se possível percebê-los, o que impunha a necessidade de distinguir políticas da plasticidade, da fluidez de hibridação e da liberdade experimental de criação que caracterizam o que eu havia chamado de subjetividade antropofágica. Descrevi estas diferenças, na época, propondo os conceitos de “baixa” e “alta antropofagia”, inspirada no próprio Oswald de Andrade (e ainda, inspirando-me Nietzsche, as chamei igualmente de “antropofagia ativa” e “reativa”).

Políticas da criação

O critério que adotei para distinguir estas políticas da subjetividade antropofágica foi o modo como se reage ao processo que convoca e dispara o trabalho de criação. Referia-me à dinâmica paradoxal entre, de um lado, o plano extensivo com seu mapa de formas e representações vigentes e sua relativa estabilidade e, de outro, o plano intensivo e as forças do mundo que não param de afetar nossos corpos, redesenhando o diagrama de nossa textura sensível. Tal dinâmica tensiona os territórios em curso e seus respectivos mapas e acaba colocando em crise nossos parâmetros de orientação no presente. É nesse abismo e na urgência de produzir sentido que se convoca o trabalho do pensamento. Já no momento deste impulso inaugural da criação se definirão suas diferentes políticas – em função do quanto se tolera os colapsos de sentido, o mergulho no caos, nossa fragilidade. Para descrever brevemente esta diferença, apontei dois pólos opostos neste processo – embora eles não existam enquanto tais, pois na realidade, além de serem muitos os matizes deste processo, eles variam no tempo de uma mesma existência individual e/ou coletiva.

Criar a partir do mergulho no caos para dar corpo de imagens, palavras ou gestos às sensações que pedem passagem, participa da tomada de consistência de uma cartografia de si e do mundo que traz as marcas da alteridade. Um processo complexo e sutil que requer um longo trabalho. Não seria algo assim o que faziam os Tupinambás em seu prolongado e rigoroso resguardo no ritual antropofágico?

Contudo, a criação pode resultar de uma denegação da escuta do caos e dos efeitos da alteridade em nosso corpo, ao invés de fazer-se a partir dela. Estripada de sua vitalidade político-poética, a força de criação tende então a produzir cartografias a partir do mero consumo de idéias, imagens e gestos prêt-à-porter. A intenção é recompor rapidamente um território de fácil reconhecimento, na ilusão de silenciar as turbulências provocadas pela existência do outro. Produz-se assim uma subjetividade aeróbica portadora de uma flexibilidade a-crítica, adequada ao tipo de mobilidade requisitada pelo capitalismo cognitivo. E, aqui, pouco importa se as idéias e imagens consumidas venham do mercado cultural de massa ou de sua contrapartida, o mercado erudito de luxo; no domínio micropolítico, as coisas não se distinguem por sua pertença à uma classe social ou econômica, nem pelo lugar que ocupam em qualquer hierarquia de saberes, mas sim pelas forças que as investem.

Pois bem, ambas políticas de criação que acabo de descrever trazem todas as características anteriormente enumeradas daquilo que chamei de “subjetividade antropofágica”. No entanto, elas resultam da ação de forças totalmente distintas, as quais se diferenciam essencialmente por incorporar ou não os efeitos disruptivos da existência viva do outro na invenção do presente.

Em suma, estava claro naquele momento que se nos anos 1960/70 era pertinente opor ao capitalismo industrial (com sua sociedade disciplinar e sua lógica identitária), uma lógica híbrida, fluida e flexível, agora havia se tornado um equívoco tomar esta última como um valor em si – já que esta passara a constituir a lógica dominante do neoliberalismo e sua sociedade de controle. É, portanto, dentro desta lógica – entre diferentes políticas da flexibilidade, da fluidez e da hibridação – que se dão os confrontos no traçado das cartografias de nossa contemporaneidade globalizada.

É evidente que o foco aqui abrange apenas parte das políticas de produção de subjetividade e cultura em confronto na atualidade. Outras forças participam deste embate, entre as quais os novos fundamentalismos que surgiram, exatamente, com a instalação do neoliberalismo e sua flexibilidade capitalística. Neste tipo de regime, o principio identitário reatualiza-se em suas formas mais extremistas. Tal política de subjetivação merece uma análise cuidadosa, não apenas em seu regime de funcionamento mas também – e, sobretudo – em sua relação com a política do flexível-híbrido-fluido. Este será provavelmente um dos desdobramentos da presente investigação.

Antropofagia cafetinada

Mais recentemente, em um novo ensaio que escrevi a este respeito, senti necessidade de criar uma nova noção, a de “subjetividade flexível”, para evidenciar o contexto histórico que eu tinha em mente – a política de subjetivação dos anos 1960/70 e seu clone capitalístico – e deixar a qualificação de “antropofágica” para sua versão brasileira. Problematizo o processo que levou a esta instrumentalização e a descrevo mais precisamente; aponto ainda a confusão que muitos da geração dos anos 1960/70 fizeram entre estas duas políticas da subjetividade flexível, e o estado de alienação patológica que tal confusão provocou. Examino, por fim, a especificidade de tais efeitos em países recém saídos de regimes ditatoriais, particularmente aqueles cujo passado fora marcado por um singular e ousado experimentalismo – como é o caso de muitos países da América Latina e Europa do Leste. Nestes contextos, paralisado pela micropolítica das ditaduras, tal experimentalismo teria sido reativado com a instalação do capitalismo cultural, mas para ser diretamente canalizado para o mercado, sem passar pela elaboração da ferida da potência de criação, condição para reativar sua vitalidade poético-política que fora interrompida. Isto fez com que o advento do novo regime tendesse a ser vivido nestes países como uma verdadeira salvação. O capitalismo cultural parecia liberar as forças de criação de sua repressão, e mais do que isso, as celebrava e lhes dava o poder de exercer um papel de destaque na construção do mundo que então se instalava. Este fato agravou a confusão entre o modo contra-cultural e sua versão pós-cafetinagem capitalística, bem como os efeitos nefastos daí decorrentes.

No Brasil, um terceiro fator somou-se ainda a esta complexa situação: precisamente, a presença da tradição antropofágica. Se esta havia desempenhado um papel na radicalidade da experiência contra-cultural dos jovens brasileiros nos 1960/70, agora ao contrário ela tendia a contribuir para uma adaptação soft ao ambiente neoliberal (inclusive de boa parte desta mesma geração, já entre seus 35 e 45 anos). O país provou ser um verdadeiro campeão atlético da flexibilidade a serviço do mercado. Aliciada sobretudo em seu pólo mais reativo, esta tradição produziu o que chamei então de “zumbis antropofágicos”.

Ainda neste texto, menciono um movimento crítico que começava a tomar corpo internacionalmente numa nova geração no final dos anos 1990 – especialmente entre jovens artistas.

E o que a arte tem a ver com isso tudo?

Aqui chegamos no terreno da produção artística. Não é coincidência que é neste terreno que tal movimento se manifesta com maior veemência: a situação acima descrita o afeta diretamente. As artes plásticas nunca tiveram tanto poder no traçado da cartografia cultural do presente, como nos últimos dez ou quinze anos. Além da proeminência que a imagem em geral adquiriu neste traçado ao longo do século XX, no campo específico da arte, as exposições internacionais converteram-se num dispositivo privilegiado para o desenvolvimento de linguagens planetárias. De fato, nelas se concentra e se compõe, num só espaço e tempo, o maior número possível de universos culturais – tanto do lado das obras, como de seu público.

No início deste texto, apontei como falso problema perguntar-se se cartografias marcadas pela hibridação, a flexibilidade e a fluidez devem ser recusadas ou celebradas. Pois bem, é tão falso quanto perguntar-se sobre a pertinência do papel da arte na invenção de tais cartografias. Também aqui, o que importa são as forças em jogo em cada proposta artística: o quanto a criação parte das turbulências da experiência sensível contemporânea. Estas resultam dos inevitáveis atritos, tensões, impossibilidades que a complexa construção de uma sociedade globalizada implica singularmente em cada contexto e a cada momento. No campo das artes plásticas, estas forças tomam corpo não só nas próprias obras, mas em suas exposições e nos conceitos curatoriais que expressam, nos textos críticos que as acompanham e nas diretrizes dos museus que as acolhem – e por fim (ou início?), em todas as práticas artísticas que se fazem numa deriva para além do terreno institucional da arte, na qual tem embarcado parte da produção contemporânea.

A força que predomina hoje neste território é a da denegação de tais turbulências, própria de uma flexibilidade reativa: a baixa antropofagia, como acima descrito. As mega-exposições tornaram-se uma das principais fontes das cartografias prêt-à-porter, vazias e sem relevo, adaptáveis para o consumo em qualquer ponto do planeta e a rápida aquisição de um repertório globalizado. Esta é provavelmente uma das razões pelas quais este tipo de exposição se espalha por toda parte em vertiginosa velocidade, a ponto de podermos supor que, num futuro nada longínquo, teremos bienais, gigantescas feiras de arte e museus de arte contemporânea com suas espetaculosas arquiteturas nas capitais de todos os países do planeta (o franchising de museus europeus e norte-americanos faz parte desta lógica).

Entretanto, paralelamente e a contrapelo deste mainstream, agitam-se outras forças que, de diferentes maneiras, trabalham na construção de cartografias a partir das tensões da experiência contemporânea e não de sua denegação. Através delas, afirma-se o poder poético da arte: dar corpo às mutações sensíveis do presente. Torná-las apreensíveis participa da abertura de possíveis na existência individual e coletiva – linhas de fuga de modos de vida estéreis que não sustentam coisa alguma a não ser a produção de capital. Não será esta precisamente a potência política própria da arte?

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